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Os melhores filmes do 57° Festival de Cartagena

Bolívia, Colômbia, Paraguai, Brasil e Espanha se destacaram no festival colombiano, uma vitrine ibero-americana cada vez mais privilegiada

08/03/2017 às 22:50


Não é porque fui parte da equipe de programação do 57° Festival Internacional de Cinema de Cartagena, mas tenho que dizer: essa edição do evento, uma vitrine cada vez mais privilegiada para o cinema ibero-americano, foi de fato pulsante e creio que valeu a pena não só para mim, que me interesso especialmente pelo assunto. Apenas os curtas-metragens foram minha responsabilidade, junto com meu colega de trabalho, o querido (diretor e produtor) Jorge Forero, e sob a batuta de Diana Bustamante (produtora) e Pedro Adrián Zuluaga (crítico de cinema), a diretora artística e o chefe de programação do festival já há três anos, salvo engano meu. Mas digo indo muito além deles e sem sombra de dúvida que em Cartagena durante esses seis dias se respirou um ar de qualidade graças a filmes fortes e necessários e que pela cidade circularam personagens de suma importância para a indústria cinematográfica de dentro e de fora da Colômbia. E os prêmios, entregues ao cabo da segunda-feira, 6 de março, dão a quem não pôde estar lá uma noção do que vivemos.



Cada seção do FICCI teve seu júri, composto em cada caso de um total de três profissionais colombianos e estrangeiros. Eles tiveram que ver grande parte de um total de 187 filmes de quase 40 países. Uma grande quantidade, da qual se pôde extrair qualidade sobretudo no caso dos títulos latino-americanos, como comprovam as escolhas que fizeram. O melhor filme de ficção foi Viejo calavera, uma produção Bolívia-Catar (sim, Catar) do boliviano Kiro Russo (foto), radicado na Argentina. Ele conta a história de Elder, um jovem problemático que perdeu o pai e que… causa problemas, infeliz na rotina que leva como trabalhador de uma mina (escura, dura, como é de se esperar) e, na verdade, na própria pele. Passou por Locarno, San Sebastián e outros festivais de destaque. Nessa mesma categoria de ficção, o premiado a melhor diretor foi o colombiano Vladimir Durán, também radicado na Argentina, por seu Adiós, entusiasmo, uma coprodução Colômbia-Argentina.

Adiós, entusiasmo levou também a importante estatueta Índia Catalina a melhor filme nacional (estamos falando de um festival colombiano). O filme faz um retrato familiar com a história de Axel e suas três irmãs, que mantêm a mãe presa em seu próprio apartamento, numa dinâmica de relações  tortas que resulta mais cômica do que trágica. Nessa categoria, o melhor diretor foi ele: Rubén Mendoza, o rockstar do cinema colombiano, por Señorita María, la falda de la montaña. Esse documentário, sexto longa-metragem de Mendoza, é um retrato sensível de uma mulher transgênero que viveu por muitos anos escondida em casa e maltratada pelos habitantes da sua cidade, no interior do estado de Boyacá – e que, sobretudo, mostra muita beleza humana. Foi um dos filmes cujo impacto positivo no público eu testemunhei: as pessoas aplaudiram e aplaudiram, participaram ativamente da seção de perguntas e respostas com o diretor, se emocionaram.

O público, na votação que lhe cabia, elegeu o documentário Amazona como o melhor longa-metragem deste FICCI. Nele, a diretora Clare Weiskopf retrata a própria mãe, Val, faz uma viagem pela selva colombiana para superar o luto pela perda da filha mais velha, deixando atrás o resto da família. Muito se fala aí da força feminina, do papel de mãe, do encontro de duas mulheres questionadoras, que ainda por cima resultam ser mãe e filha. 

E falando em relações familiares de primeiro laço, Ejercícios de memoria, da paraguaia Paz Encina,  que reconstrói memórias dos filhos de Agustín Oiburú, o maior opositor do regime ditatorial de Stroessner no Paraguai, foi eleito o melhor documentário deste ano em Cartagena. Paz também foi escolhida a melhor diretora da categoria, e ambos prêmios são de uma “justiça" sem fim. Tanto o filme é sensível, belo mesmo… além de necessário, realmente, como ela se mostra uma realizadora de mão cheia, com todos os sentidos aguçados e que nos entrega um trabalho de fato relevante, redondo, sensorial. Participei de uma emocionante sessão de perguntas e respostas com esse filme, em que senhoras de quase 70 anos se desfizeram em elogios à obra e se declararam fã da diretora graças a Hamaca paraguaya, que a lançou (em festivais, pensava eu) em 2000. 

Por fim, mas não por último, os curtas. Que um dos meus grandes preferidos da seleção tenha sido eleito o melhor foi a cerejinha do bolo cartagenero: Cucli, do espanhol Xavier Marrades, realmente merecia o reconhecimento. Parece ao princípio a história de um homem cuja esposa faleceu e que mantém uma relação carinhosa com uma pomba (isso, uma pomba) que o acompanha em suas viagens de caminhão pela Espanha, mas vai revelando ser muito mais. Para mim, é um retrato da solidez das verdadeiras relações afetivas, um convite a olhar mais além do cotidiano e da própria realidade. Poético e incisivo, justo na medida de um curta-metragem inspirador.

Ah, e quase me esqueço: Aquarius, o segundo longa-metragem de Kleber Mendonça (Som ao redor), que todos conhecemos não só pelo protagonismo de Sonia Braga mas inclusive pelo cerceamento que o filme sofreu desde que sua equipe se manifestou contra o atual Governo brasileiro durante o Festival de Cannes, levou o prêmio a melhor filme da seção Gemas, dedicada às jóias do cinema internacional. 

O Festival de Cartagena terminou não só celebrando bons filmes, mas números chamativos também.  O principal deles mostra que o evento foi, mais que nada, um sucesso de público: 110.000 espectadores, segundo se anunciou no dia do encerramento, foram contabilizados em seis dias de projeções (que agora seguem, numa itinerância pela Colômbia que inclui exibições em Bogotá, Barranquilla e outras cidades). Vale aqui fazer mais um comentário pessoal: muitos momentos foram carregados de vibração política, da abertura com o documentário colombiano El silencio de los fusiles, em que a jornalista Natalia Orozco fala com os personagens de primeira linha do acordo de paz na Colômbia, ao fechamento com o longa de ficção do diretor brasileiro Felipe Braganca, o tão panamericano Não devore meu coração, estreado este ano em Sundance e exibido em seguida também em Berlim. Bragança fez um emocionado discurso antes da exibição do filme, pedindo atenção para o que acontece hoje politicamente no Brasil, denunciando os rumos anti-democráticos que tomou a sucessão de poder no país. A plateia respondeu ao seu pedido com palmas que soaram a compreensão, empatia. E teve inclusive gritos de “fora, Temer”. Cartagena foi, enfim, emocionante e, mais que nada, relevante.