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Terror no Paraguai ontem e hoje

'Ejercicios de memoria’, belo documentário da paraguaia Paz Encina, retrata a violência que continua viva em seu país

04/04/2017 às 11:19


Quando assisti Ejercícios de memoria (2016), o segundo longa-metragem da realizadora paraguaia Paz Encina (do premiado Hamaca Paraguaya, lançado em Cannes em 2006), tive a sensação de ter diante dos olhos um filme eterno. Apesar de ser um documentário sobre um tempo e um lugar específicos da História – os anos da ditadura de Alfredo Stroessner no Paraguai (1954-1989) –, Ejercicios é uma viagem muito mais sensorial do que factual pelas memórias da família de Agustín Goiburú, um médico opositor do regime que foi sequestrado e desaparecido em 1977. Falo de um filme sem nenhuma pretensão de esgotar-se como documento histórico, mas capaz de inspirar uma profunda reflexão. 

Tem um trabalho primoroso (e muito narrativo) de som, algo que Paz já tinha alcançado com a Hamaca Paraguaya (quem já viu o filme pode assistir ao making of aqui), ainda que, ao contrário dessa ficção, seu segundo filme se aproxime muito mais dos personagens com a câmera (que neste caso se move, e muito). Tudo é visto de perto, talvez para que estejamos na fila do gargarejo dos sentimentos que despertam o lugar e a época retratados – e todas as coisas inseridas neles. E tudo é mostrado com beleza, isto é, ressaltando a beleza intrínseca das pessoas e até dos objetos, como uma tentativa de "restaurar" o lado bom da vida de uma família, usurpado pela ditadura com toda a violência.  

Na exibição de Ejercicios de memoria que acompanhei no 57° Festival Internacional de Cinema de Cartagena, onde por sinal o filme levou o prêmio ao melhor documentário e a realizadora, o de melhor direção de documentário, Paz ao final fez comentários sobre a ditadura paraguaia. É a mais longa da América Latina, sangrenta como todas e ainda assim muito menos “comentada" nas aulas de História de todos nós, latino-americanos, que se dirá de outros em outras praças. Ao contrário da Argentina e do Chile e assim como o Brasil, o Paraguai se esforçou pouco até hoje em exercitar sua memória, e segundo Paz, esse é um motivo que contribui para que o stroessnerismo continue vivo em seu país, apesar do fim da ditadura. Ela chegou a comentar, e seu comentário me marcou: “Não deixaremos [os paraguaios] que essa violência passe desapercebida pela história. É preciso fazer memória desses anos terror para que eles não voltem”. 

Aí entram os acontecimentos recentes no Paraguai. O país está vivendo uma onda de protestos e violência por conta da manobra de 25 senadores que usaram mecanismos regimentais para aprovar a possibilidade de reeleição do presidente Horácio Cartes no pleito de 2018, o que é proibido pela Constituição paraguaia. Li no perfil de um amigo no Facebook um relato a respeito da ação truculenta da polícia para conter os manifestantes.  Ele estava em Assunção nesse momento para uma gravação. Depois vi na Folha de S.Paulo, nesta segunda-feira, 3 de abril, o depoimento, sobre o mesmo episódio, de João Wainer, de cuja equipe de filmagem esse meu amigo fazia parte. Wainer fala em “campo de guerra” e descreve "dezenas de carros incendiados em uma intensa batalha entre manifestantes armados com pedras, pedaços de pau e tacos de baseball contra policiais que disparavam jatos d'água, gás lacrimogênio, bombas e balas de borracha”. 

O texto termina com um comentário sobre a cena política do Paraguai (e de toda América Latina), “viciada”, com muito de “antigo” e “nefasto”, e é por isso que lembrei do documentário de Paz Encina com o qual começo este texto. Seu autor tem razão, é uma realidade nefasta e que deveria estar superada, mas continua presente, e é portanto viciada. A única maneira de lutar contra isso, além de exercer seu direito de se manifestar e resistir, como fazem os paraguaios, é fazer memória. Por isso, Paz Encina também tem razão. Enquanto os detentores do poder, das bombas e dos jatos de água querem que esqueçamos e sigamos “adiante”, sem ver a luz ao final do túnel, o bom cinema quer descortinar o terror e impedir que se esqueça, gerando reflexão. Muitos realizadores, como Paz, são capazes de fazer isso inclusive com beleza. Assistam Ejercícios de memoria e comprovem.